Espoliação "consentida"

Escrevo. Apago. Escrevo e novamente apago... sob um movimento quase que automático. As ideias me parecem inertes. Não por falta do que dizer, ao contrário, por puro atropelo.
Na ausência de vinho, bebida tema de belas crônicas galeanescas, resta-me o som, da música escolhida e, ainda mais, das ideias a fustigar minha cabeça. 

É engraçado como as leituras mudam a partir da mudança das nossas próprias experiências. É mesmo a tal da dialética. A vontade de escrever esse post veio depois de reiniciar uma leitura realizada ainda em tempos de graduação. A obra, que mesmo depois de décadas é de uma vitalidade tamanha, é As veias abertas da América Latina, de autoria do Eduardo Galeano (tão citado neste espaço). Admira-me a capacidade com que ele passeia por temas tão instigantes, mas não menos doloridos, de forma tão laboriosa. Como ele disse em outra obra, suas letras são dedicadas a dar voz aos que são "desprezados por aqueles que desprezam as próprias ignorâncias".

Depois de ler páginas e páginas, minha inquietação ardeu ainda mais no momento em que o autor começa a descrever a devastação provocada pelo avanço do capitalismo - ainda em tempos de colonização ibérica - aos povos indígenas da América pré-colombiana. O relato é feito sob vários aspectos, dos econômicos aos culturais, mas nunca perdendo a noção de totalidade dos acontecimentos.

É estarrecedor saber que das sociedades Incas, Maias e Astecas foram dizimados cerca de 86 milhões de índios em pouco mais de um século de domínio europeu. 
As cidades de Cuzco (Peru) e Potosí (Bolívia) são exemplos emblemáticos, forçadas a suprir as necessidades econômicas dos cofres franceses, holandeses, e, principalmente,  ingleses, tiveram seus índios tragados pelas mazelas das minas. Cotidianamente, massas indígenas iam e não mais retornavam. Era o progresso que chegava em futuras terras Latino-Americanas.

Entretanto, de tantos fatores, um me chamou mais atenção, o incentivo à proliferação de substâncias alucinógenas por parte das nações dominadoras. Minha inquietação não deveu-se exclusivamente ao fato em si, mas pelo que ele remete. Não precisa ter grande poder de abstração para perceber milhares de contradições no sistema capitalista, ainda que uma gama de imponentes teóricos se valham de ideias inovadoras para defender o quão bom é viver numa sociedade onde a liberdade não passa de um molho com o qual escolhemos como queremos ser devorados, como diz Galeano.

No caso das drogas, fica demarcado que ao falar de combate, não é intenção do Estado salvar todo e qualquer sujeito. Isso porque, fora as grandes somas que rendem esse mercado, é o próprio modelo de produção desenfreado que oferta como única opção à massa de trabalhadores o uso de tais substâncias.
Foi com o incentivo do uso da folha de coca, em terras bolivianas no auge da mineração, por volta dos séculos XV e XVI. Mas também é hoje, com trabalhadores das lavouras de laranja, cana-de-açúcar, como também em ramos totalmente diferentes, como o de transporte. É cada vez mais comum motoristas de ônibus e caminhão fazerem uso de substâncias que os mantenham acordados por mais tempo.


(...)

Tais antagonismos só me fazem perceber que por mais propagandeada que seja a evolução nas relações sociais sob a égide do capitalismo, não é necessária uma lente genial para perceber que o odor continua a exalar. O alvo da miserabilidade e desumanidade, de tempos em tempos, tem sempre corte de classe!


Por Natália Freitas

Comentários

  1. uma mistura de historiadora e cronista, na qual não é possível saber onde começa uma e termina a outra. pleno domínio do que escreve, completamente diferente dos jornalistas, que escrevem sobre tudo, mas não sabem de nada. o texto também tem poesia, o que garante que o leitor não mude site, pois quem deseja saber sobre a história não espera meros relatos. sempre melhorando. muito bom. esse video tem tudo a ver com seu post - http://www.youtube.com/watch?v=W7-PVXTKRC0&feature=related

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Tá tudo amassado

Los treinta y seis colores de una vida

Quando chuva