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Mostrando postagens de 2013

Lastro da escrita

Tic-tac. Tic-tac, avisam-nos os relógios todos os dias. Ao invés disso, eles deveriam dizer: menos um, menos um, menos um. Menos um de tudo. Do tempo que transpiramos. Da distância de coisas, pessoas e pensamentos. (...) Buzinas irritadas, transito infernal. Todos cheiram a formol. Prédios são erguidos, enquanto outros teimam por desejar o chão. (...) Aparelhos eletrônicos nos dizem a hora de levantar, quanto comer, correr, beijar, amar... (...) Láááá longe. Em algum lugar dessa vastidão que é o mundo. Existe um eu. Eu que viveu e vive tentando se encaixar. Encontrar aquela casa de árvore feita de madeiras de demolição. Um lugar no mundo. Um estar no mundo e em si. Estou agora sentada escrevendo e refletindo sobre o que li antes do almoço. Leituras que, espero eu, sirvam para alimentar minhas próximas linhas acadêmicas. Mas eis que o velho incômodo bate à porta e resmunga: - É isso que desejas? É isso que te define? (...) E sou obrigada a mais uma vez pa

Folha que cai, resquícios de um tempo

Não adiantava. Poderia tentar se segurar mais uma vez, mas não adiantava. O vento soprava-lhe o peito com tanta força que ela percebera. Era chegada a hora. Nos seus anos de folha, todos haviam lhe contado que o fim seria esse.  Um galho seco. Um elo desfeito. E um voo para o chão. E lá se foi ela. Bailando pra lá e pra cá. Pra lá e pra cá... Mas o que ninguém contara era o percurso. Estava ela, uma folhinha atrevida tentando voar diferente, ainda que às folhas, em seu fim, só coubessem o aceite de cair, murchar, secar e sumir. Por um instante ela jurara sentir que um lindo bailarino tomara-lhe os braços para uma última dança. Aceitou sem pestanejar e lá se foi. A plateia se fazia presente. O sol brilhava como nunca e olhá-lo ao cair era ainda mais ofuscante. Mais parecia que seus raios a abraçavam para proteger-lhe da futura queda. Foi então que ela pois-se a relembrar. Das brincadeiras com as outras folhinhas quando criança; Daqueles frutos p

Voz rouca

Fogos, ardor, clamor: defesa interna já! Psiiiu! ouça, eles riem, ouve-se ao longe Outros nem isso Calam-se as greves e as Ligas Também seus filhos, homens de construção A juventude insiste, resiste... é abatida Vermelho, de luta, de sangue Mudar Apagar Silenciar Forjar Omitir Cegar Verbos do sim e do sim senhor Pais mutilados, mulheres estupradas e também as leis Crianças órfãs... de um passado, de um presente e de colo Muitos a errar, errar por não querer calar, aceitar, exilar Numa sala qualquer do  DOI-CODI cai mais um "subversivo" ... em casa, uma mãe tira o bolo do forno, prepara o café e espera a chegada do seu. Por Natália Freitas

Helena de trinta

Na lira dos seus 10 anos o que Helena mais desejava era ter 15. Balbuciava para si mesma todas as façanhas que realizaria quando esse dia chegasse. E ele chegou. Mas a inquietude dos ventos levou seus melhores carnavais. Ainda sim, não deixou por menos. Viajou, fez amigos, brigou, chorou, sorriu e amou (e como amou). (...) Não bastava. Sentia-lhe no peito um descompasso incômodo. Era uma estranha a si mesma. (...) Diariamente, empossava-se em belos trajes e ia trabalhar. Executava iguais movimentos para dias diferentes. Pesava-lhe a falta. (...) Dos livros que leu, dos vinhos que bebeu e, de tudo que escrevera, a falta era presente. Sim, um bocado de falta para um bocado de muito. (...) Tornou-se habitual em seus ponteiros o observar do movimento alheio. Era-lhe uma missão descobrir o que a ela faltava. Em anos seguidos acumulou grande pesquisa. Sabia por A + B o que incomodava aquela vizinha ranzinza. Aprendera, inclusive, a prever as frases feitas que e

O chão que pisamos

Passamos a vida correndo para realizar os tais sonhos que nos qualificam como pessoas exitosas. Eu não sou a exceção. Desde criança meus pais me indicavam o caminho certo a seguir, aquele que me faria dar certo na vida. Hum... o problema é que só depois, muito depois, eu descobriria que dar certo na vida é muito chato. (...) Pois bem, mas aqui estou. E de dívida nova. Melhor dizendo, apartamento novo (ainda que o coitado não seja tão novo assim). E todo cafofo pede uma transformação. (...) Um desejo aqui, outro ali e um devaneio no meio e lá estamos nós passeando por um mundo de menos dinheiro e mais tentativas externas de nos padronizar. É uma sala que tem que ser assim. Um quarto que deve ser pintado com a cor da moda. A cozinha que pede esse ou aquele revestimento. - Senhora, isso não se usa mais. Agora esse modelo tá com tudo. Diz pra mim o vendedor da loja. - Magina, isso não combina com aquele piso. Responde a mocinha da loja de móveis. - Ah, não

A alma da casca

Muito fácil seria se todo poema terminasse em rima perfeita. Daquela de afagar o peito por puro conceito. Mas não. Poema que se preze corta por intenção. É a procura de alma para um corpo vazio. É o sorriso rasgado daquele que esqueceu a viela da felicidade. Bem longe do bailado parnasiano, dois quartetos e dois tercetos. (...) Poe(mar). Para além, do quê? Do verso. Transpondo o inverso. Do que te parte, te seca, te esconde sob os lençóis. (...) O corpo pede a exatidão das linhas curvas. O preenchimento daquele "enter" por um entre. (...) Sente-se o naufragar dos pensamentos rotos. Poesia é o vômito dos ébrios da razão metrificada. É o desconserto do acerto. Racha a casca. Arde. E nos torna mais humanos. Por Natália Freitas