Helena de trinta




Na lira dos seus 10 anos o que Helena mais desejava era ter 15. Balbuciava para si mesma todas as façanhas que realizaria quando esse dia chegasse.
E ele chegou. Mas a inquietude dos ventos levou seus melhores carnavais.
Ainda sim, não deixou por menos. Viajou, fez amigos, brigou, chorou, sorriu e amou (e como amou).
(...)
Não bastava. Sentia-lhe no peito um descompasso incômodo. Era uma estranha a si mesma.
(...)
Diariamente, empossava-se em belos trajes e ia trabalhar. Executava iguais movimentos para dias diferentes.
Pesava-lhe a falta.
(...)
Dos livros que leu, dos vinhos que bebeu e, de tudo que escrevera, a falta era presente.
Sim, um bocado de falta para um bocado de muito.
(...)
Tornou-se habitual em seus ponteiros o observar do movimento alheio. Era-lhe uma missão descobrir o que a ela faltava.
Em anos seguidos acumulou grande pesquisa. Sabia por A + B o que incomodava aquela vizinha ranzinza. Aprendera, inclusive, a prever as frases feitas que ecoavam da boca dos mais próximos. Porém, a falta continuava se esgueirando pela história.
(...)
Um dia Helena sonhou.
Sonhou que via duas crianças sentadas embaixo de uma árvore. E que elas riscavam o chão com um galho ao mesmo tempo em que conversavam.
O sonho era dela, mas, as criaturinhas, de tão petulantes, só permitiram à Helena ouvir suas risadas e os cochichos astutos.
Pela primeira vez, Helena sentia que era tamanhamente impossível identificar os reais interesses daqueles seres menores.
(...)
Um vento forte sacudira a janela e Helena fora arrancada daquele sonho feliz, que, de tão feliz, mais parecia zombaria.
(...)
Repetira, mais uma vez, aquele movimento de vestir roupas e frases.
(...)
Era só mais um dia de trabalho e de pessoas? Ao que parece, não. Não decifrar o desejo daquelas crianças lhe forçava uma pausa para o café. Aproximou-se de uma janela que ficava no 12º andar de onde trabalhava.
(...)
Transitavam, lá embaixo, muitos automóveis e pessoas. Aqueles bonequinhos caminhavam muito rápido. A ligeireza das caminhadas provocava em Helena a vontade de olhar e olhar. Afinal, eram tantas cores. E como eles dançavam...
Soprava o café. Puxava um trago de seu cigarro e, de repente, BUUM. Helena era só pensamentos.
(...)
Melhor do que o homem aranha, Helena começou a voar entre os prédios. Vira um homem de calças abaixadas atrás de uma árvore fazendo o que bem todos sabem: o número 2. Mais à frente, dois homens velhos discutiam política sentados no banco da praça. Uma menininha de cabelos longos e cacheados lhe sorriu. Eram todos castanhos claros, olhos e cabelos.
A menina estava com a mãe, mas esta não percebeu o sobrevoo de Helena. Uma piscadela de olhos entre as duas. A piveta vestia um vestido vermelho, sapatos lustrados pretos e meias brancas com babados. Ah, também um laço vermelho fazia parte daquela composição. Mas uma coisa Helena não podia deixar de ver. A criança escondia nos bolsos (e como estavam cheios!) aquelas bolinhas de vidro, típicas de jogos de meninos.
(...)
E Helena passou. E o que viu causou-lhe grande incômodo. A composição do cenário era torto. Ali havia aqueles que compravam, mas também os que eram comprados. As enormes chaminés das fábricas cuspiam uma fumaça pesada. Levava consigo os melhores anos de muitos dos que ali laboravam.
(...)
- Helena? Helena? Tá surda? Não acha que essa pausa está longa? Volte ao trabalho!
(...)
BEI! BUF!
Por um estante, Helena teve a certeza de que fora puxada pelos pés. O tombo foi forte. E como doeu. Olhou para ver se os cotovelos estavam arranhados. Limpou o vestido. Aquela seda vermelha tinha-lhe custado 2 meses de economias.


Por Natália Freitas





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