De repente um dia...
Todos os dias ela cumpria um ritual: olhos arregalados, mirava o teto de seu quarto. A chuva do último inverno deixara marcas na pintura já antiga. Aquele cenário era prato cheio para a criatividade de uma menina de 10 anos. Ali a entrada era franca. Participavam da festa leões com trombas de elefante, a professora Jacira, a primeira a mostrar-lhe o mundo letrado e também um montão de pipoca com chocolate. Era tudo muito harmônico, bastava forçar um pouco a cabeça para tudo mudar e, num instante, os leões usavam óculos e a tia da escola dava lugar a uma bicicleta amarela.
Nascida numa cidade qualquer, os vizinhos a olhavam com certa desconfiança. Dizia uma senhora, assídua frequentadora das calçadas, para uma outra moradora:
- Sabia não, faltou oxigênio na hora do parto, por isso ela ficou assim. É lelé, tadinha.
Na escola, amigos eram espécie em extinção, a não ser pela Laura, menina de vívidos olhos caramelados. As duas sempre sentavam juntas na aula e dividiam os trabalhos solicitados pelos maestros.
A estranha, como foi apelidada pelos colegas de turma, adorava perguntar sobre os mais variados assuntos. Certo dia, soltou uma pérola que não agradou em nada o professor de religião. A menina queria saber qual era o horário de trabalho do senhor Deus, porque no dia anterior notou uma família inteirinha se atirando nas lixeiras de sua rua procurando não sabia bem o quê.
- Acho mesmo que ele estava em dia de folga, professor. Comentou a espevitada.
Ela era filha única, fora muito desejada pelos seus pais por anos. Ainda sim, percebia em sua mãe uma certa inquietude toda vez que chegava algum bilhete solicitando seu comparecimento na escola. Por duas vezes pensou ter ouvido dona Marta cochichando sozinha no terraço depois de abrir um desses "convites".
Os dias se passavam e nada muito diferente acontecia. Logo pela manhã ia à aula. Chegava em casa por volta de meio-dia e duas horas depois já estava em seu quintal trepada ao pé de carambolas. E ficava por lá até ouvir os gritos de dona Marta, chamando-lhe para fazer os deveres de casa.
De repente, um dia chegou na escola um novo aluno. Era meio de semestre e, se já era difícil pra ela que estudava lá desde pirrota, quem dera para aquele garoto (ainda por cima com aqueles ferros todos nos dentes). O professor de inglês chamou-o para que se apresentasse. Conhecendo bem a turma como ela conhecia, já imaginava o que estava por vir...
Ressabiado, o menino não ousou fitar a turma. De cabeça baixa falou seu nome: Paulhinho (infelizmente aquele bendito aparelho não lhe permitia a pronúncia certa). E no mesmo instante fez-se o coro de altas risadas.
Ela o olhava, olhava...
Na hora do recreio, Paulinho estava em companhia de seu lanche e um livro. Ninguém se aproximava dele. Era norma de conduta entre os demais alunos. Por certo tempo ela só observava-o, tinha dó daquele garoto. Ele parecia ser legal. Pensou em falar-lhe algo, mas não teve coragem.
A indigesta rotina manteve-se por longos dias. Longos, mas não infindáveis...
No final de semana, os dois se encontrariam no parque da cidade. Ela vestia vermelho e ele estava sentado no chão, escorado a uma árvore e envolto em mais um de seus pesados livros.
Ela respirou fundo. Aproximou-se e, de súbito, estendeu-lhe a mão.
Paulinho olhou para cima com uma das mãos sobre a testa, numa busca inútil de desviar os reflexos do sol. No canto da boca, deixou escapar um certo sorriso tímido. Levantou-se, limpou as mãos na bermuda xadrez e continuou:
- Prazer, meu nome é..
E, antes que pudesse completar, ouviu um "Paulinho, eu sei".
O menino achou curioso tanta agonia, mas preferiu não comentar. Optou por devolver com uma pergunta: E você?
Pela primeira vez ela não sabia o que dizer. Tentava esconder a vermelhidão do rosto mas não tinha jeito. Demorou uns segundos e soltou:
- Humm... na escola eles me chamam de estranha, dizem que meus pais não tiveram criatividade para me dar um bom nome. Enfim... Felicidade. Meu nome é Felicidade.
E antes que ele tivesse tempo de falar algo, a menina agarrou-lhe pela mão e saiu correndo.
Por Natália Freitas
Nooooooooooossa! como faz heim?! morro e nasço de novo pra aprender a escrever assim?! Rosita de meo corazon! Parabéns....aamei!
ResponderExcluirvc deveria mudar de ofício. se um dia resolver parar de fazer o que faz neste blog, o mundo perderá algo muito importante. a propósito, vc deveria seguir a alegria de sua personagem felicidade.
ResponderExcluiraspresentcho a vocêêês!!!
ResponderExcluirMiiiss... TALENTO!!!
Amamos suas crônicas, miss talento!!! Tchau, miss talento!!!