Entre palavras
Era fim de tarde quando duas palavras se encontraram num parque. O acaso as levara ali.
Tudo parecia muito bem. Muitas crianças se faziam presentes. Brincavam de um tudo e desatavam a chorar toda vez que uma mãe aparecia para acabar com a festa. O dia também fazia sua parte, estava bonito que só ele.
O encontro das palavras foi muito mais um esbarrão. Uma delas caminhava pelo parque como se buscasse algo. Mas o que era, nem ela sabia. A outra palavra avistara a amiga de longe e, primorosa que estava, correu para tecer o cumprimento.
Falou-lhe do quanto havia viajado desde a última vez que se viram. Disse que fora personagem principal de um grande romance; que dera rima a um dantesco poema; que fizera isso e aquilo...
Contou à palavra 1 dos tantos projetos que a tomariam nos próximos meses. E falou tanto que nem se apercebeu que as suas palavras fizeram eco no imenso vazio que tomava o peito de sua amiga.
E não parou por um segundo sequer. Afinal, havia tanto tempo que não se viam, era normal. Pensava.
Seguiram-se horas e horas e a palavra 2 não fechava a matraca. E a palavra 1, receosa de parecer mal educada, só ouvia (ou ao menos tentava).
Quando finalmente deu uma trégua, palavra 2 inflou os pulmões e passou a bola, melhor dizendo, as palavras para a outra.
- E ai, menina. Agora é a sua vez. Conta um pouco o que andou fazendo por essa literatura de meu deus.
- Bem, como posso dizer? ... trabalhei nos bastidores.
- Humm, já sei. Andou nas margens de alguma história sem graça. Acertei? Perguntou palavra 2.
Palavra 1 coçou a cabeça, fincou o olhar em algum ponto fixo qualquer e disse:
- Estive em várias. Da alegre à vigarista, passando pela ácida. Na sem graça também me fiz presente. Mas sabe, ainda que em todas essas, eu nunca estava.
- Calminha, você bebeu? sim, porque isso só não é filosofia, é?! Resmungou a palavra atriz.
- Não sei. Devolveu palavra 1 sem erguer os olhos.
O jogo havia cansado a palavra 2, que de tanto se irritar com as evazivas da amiga, despediu-se e partiu.
Foi então que palavra 1 agachou-se próximo a uma árvore e continuou lá por horas. Sem se dar conta, penetrou no mais íntimo de seus pensamentos. E a memória revirou-lhe o mais fundo que podia. Nesse momento, a palavra 1 se deu conta do tanto que havia sido requisitada.
Assim foi quando aquela moça perdera o menino que amava tanto mas que nunca lhe dissera.
Foi também com dona Genalva quando perdeu o marido depois de longos 50 anos de casados. Assim também o foi para Renato, pois nunca tivera forças para dizer ao seu pai o quanto o amava.
E assim havia sido para centenas de pessoas que por um motivo ou outro seguraram no fundo das entranhas as palavras mais importantes e também mais difíceis de dizer.
Palavra 1 se deu conta de que em todos esses momentos era ela que estava na ponta da língua de um alguém. E que, protagonista ou não, ela terminava sempre retornando goela abaixo.
Concluiu então que nunca fora amiga da boca, mas sim do coração e do estômago. Mas isso palavra 2 nunca entenderia. Ninguém nunca entenderia ... isso porque as palavras foram feitas para brilhar.
Por Natália Freitas
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